domingo, 20 de abril de 2014

 Acho que entendem a minha dor como arrogância. Como se eu nunca tivesse tido o direito de sentar um pouco, trancar os cadeados daqui de casa e ficar sozinho. No escuro. Sem som nenhum. Até a dor ceder. Até adormecer. Eles confundem a necessidade de digerir tudo com solidão. Antes fosse só solidão e umas pílulas pra dormir. Antes fosse só insônia das brabas e umas sessões de terapia pra resolver. O que eu perdi não criou trauma, nem sequela aparente. É que não dá pra fingir que nada aconteceu ou que, pior, passou. Eu não passei, meu bem.
Eu convivo com a falta. Os meus demônios me deixaram aqui depois que você me deixou aqui também. As coisas quase pararam depois daquela terça-feira ensolarada. O dia tava ótimo e dava pra gente ter pegado uma praia, matar o trabalho, fugir dos celulares e tudo o mais que a gente costumava fazer. Mas não deu.
Era uma terça-feira diferente num corredor estreito com o coração mais estreito ainda na mão. 
Quase precisei de um desfibrilador quando os médicos vieram. A visão apagou. A audição acompanhava um ritmo constante de quem tinha acabado de desligar o que me mantinha vivo. Deitei no chão e só acordei quando já tinham tirado você de mim. Se você fosse, lembra que eu não iria aguentar ficar aqui também?
Eu não quero esquecer, eu não quero tratar de seguir em frente. Porque eu tenho certeza de que eu seria uma pessoa pior pra mim – e pra você – se eu jogasse tudo fora, pintasse as portas, limpasse as botas… Sem você a falta cresceria mais ainda e me devoraria. Me engoliria a seco. De uma vez só. Sem nem respeitar a minha dor como os outros, que pisam em ovos quando falam do seu nome. Eles não gostam de me revirar. Só querem mesmo é me expulsar de você por alguma razão benéfica que a minha razão desconhece.

Tudo ainda é sobre você. Até mesmo essa minha vida, que era pra ter sido menos ordinária se você ainda estivesse aqui.


                                            É como se você gritasse mas ninguém pudesse ouvir.
E você sempre se sente envergonhado
por alguém poder ser tão importante daquele jeito
que sem essa pessoa você se sente um nada.
Ninguém nunca vai entender o quanto isso dói.
Perde a esperança.
Como se nada pudesse salvar.
Tudo se foi e está acabado.
Então, você deseja ter todas as
 coisas ruins de volta
pra também ter o que era bom.

Quando você foi embora

- Daniel Bovolento

A insistência pode ser mais dolorosa do que o fato em si, sabia? Porque eu, ah, eu tenho dessa coisa minha, só minha mesmo, de me apegar a cada rejeição e criar como se fosse semente no algodão. Com afeto e com todo cuidado doentio de quem não consegue se desprender dum mundo-nada-ideal em que você não me contou nada, e eu finjo saber em silêncio. Finjo saber que você vai embora daqui a pouco, finjo saber que você vai sentar comigo numa praça movimentada às oito da noite duma terça-feira friorenta pra cravar sete graus Celsius de despejo no peito. Finjo que sei prever o futuro e pode ser que eu esteja certo e que isso vá acontecer, mas o fato da previsão ser duvidosa, ainda que numa margem de erro pequena, me conforta. Me conforta porque você ainda não bateu o martelo, não me chamou pra falar, não decretou alforria sentimental e nem se desprendeu de mim. E enquanto eu tenho isso, eu finjo, finjo, finjo e suplico pra mim mesmo que tá tudo bem.
E chega um dia em que você me conta que conheceu alguém novo.
Nesse dia não teve porta destrancada e eu nem me lembrei de acender a luz do corredor. Nesse dia bateram lá em casa pra ver se tinha alguém e já não tinha. Apaguei a luz pra ver se você caía no meio do caminho tentando me achar, pra ver se você se machucava ou se cortava no chapisco da varanda, pra te causar alguma dor física que compensasse. Ah, porque a gente quer sempre machucar o outro de alguma forma quando a gente sente dor sozinho e quando nem tem como remediar direito. Quer que o outro se sinta mal e se sinta mesmo, sem dó nem piedade. A gente quer deslocar o lugar de vítima pra outra pessoa que não seja a gente porque a gente não se basta mais de tanta angústia que já cabe aqui dentro.
Eu rego minhas mágoas diariamente. Só que essa tem lugar especial. Como num ritual pré-estabelecido, despejo água salgada direto da fonte sobre ela. Que se alimente de mim e de você e de toda essa dor comprimida que não dá pra engolir. Despejo o vidro de remédios no ralo da pia e desço com eles pra viver nessa condição-placebo que me obriga a te acusar. E te despejo de acusações. Te acuso de ainda estar bem. Acuso e recuo e queria que você sentisse o gume pontiagudo espetando, raspando a ferida pra não infeccionar, pra deixar os pontos abertos, expostos pra drenar você. Recuso a cura. Me recuso a aceitar que você tenha passado por isso como se nunca tivesse visto metade do que eu vi de sofrimento e solidão. Abuso e peço pena de tortura – porque o que eu sinto não pode pegar prisão perpétua e o corredor da morte pra gente carece de pânico e de dor pra você. Exijo tortura em histeria. Numa histeria tão silenciosa quanto a dor de ver quem você amou indo embora de mãos dadas com alguém, sem nem sentir o peso da sua perda. Numa histeria que observa o calendário e confessa que os meses de janeiro a dezembro tiveram carinho, conforto e passaram sem marcas pra você enquanto eu via cortes cada vez mais fundos numa pele inchada e marcada por malas nunca desfeitas debaixo dos olhos.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

8 anos

Esse texto é para ser lido ouvindo essa música.

Eu nunca gostei da cafeteria que você sempre me levava, mas eu ia, ia por que o café da manhã de lá era o seu preferido. 
Você nunca soube que eu tinha um lugar preferido ali – e só era preferido porque era nosso. Que o sol batia levemente no seu rosto e que parecia sempre a primeira vez que eu te via quando o seu rosto se iluminava e você levava o dedo sujo à boca. Que você parecia uma criança feliz e que toda insegurança do mundo ia embora naquele momento.
E nem era nada demais. É só que o mundo com você era mais seguro.
Eu gostava mais dos cinco minutos com você na cama. Dormindo mesmo. A sua mania invasiva de colocar o peso das pernas – e não o do mundo – em cima de mim era reconfortante. “Você nunca vai estar sozinha” era o que o seu corpo me dizia. A respiração pesada e nada ritmada me deixava assustada e eu já passei noites sem dormir pra garantir o seu sono bom.
E nem era nada demais. É que você era meu sonho bom, e eu nem precisava estar dormindo pra isso.
Quando a gente discutiu sobre a minha música favorita dos Beatles,  ou sobre o tamanho da minha  roupa e a cor do seu cabelo naquela idade, eu só sabia discordar. É que você precisava sempre de um contraponto pra argumentar comigo, e me mostrar que a sua inteligência teria me atraído ainda que eu não pudesse ter visto nenhum dos seus sorrisos – o que seria uma pena. Eu te deixava irritado porque, na verdade, eu sou um garota de doze anos num corpo de mlher. O jeito dona de mim era  só disfarce pra não entregar de bandeja que você me desorienta. E que não tem manual de instruções – nem meu, nem seu – que dê jeito nessa desconstrução de rotina gostosa que a gente tem. Ou tinha.
E nem era nada demais. É que com você eu sou eu e mais mil outros eus.
Que era pra te agradar e te contrariar. Pra tentar ser tudo o que você precisava em mil e uma noites. Que os meus melhores textos são sobre você – e que as minhas maiores confissões envolvem o que é nosso e o que ninguém mais sabe. Nem você mesmo. Você nunca soube que eu matava as saudades te guardando em caixas. E que o meu armário é montado com partes do que a gente foi e viveu. Que eu sei o seu cheiro de cor e salteado. Eu sinto de vez em quando no meu quarto. Mesmo que você não esteja lá.
Você nunca soube que eu sempre te trago pro presente. E não há passado que realmente tenha passado e te deixado pra trás. Que a minha linha do tempo só trata de você em modos únicos e imperativos. E que não há pedido ou ordem que tire o seu lugar suspenso do tempo na minha história. Que eu te resgato em tudo: desde as fotos aos cheiros. Desde as cartas que eu escrevo, empilho e não envio. Desde os sorrisos repuxados pelos cantos, espaçados no acaso, que são mais involuntários do que aquilo que eu sinto por você. E cada sensação minha tem um pouco de você. É que você sempre me deu nó.
Um dia você me perguntou “como vão falar de amor sem mencionar nós dois?”. E me disse que eu nunca chegaria a uma definição exata – nem parcial – de definição alguma.
O que você nunca soube é que eu escrevi essa carta pra falar de amor. E acabei não achando um jeito melhor do que falando de nós.

eu sinto tanto a sua falta Lu!