domingo, 3 de novembro de 2013

Quando saber que o tarde é tarde demais?

Desde uma conversa com Ele em uma noite dessas, que algumas coisas estão ecoando na minha  cabeça...

Seria a hora de tentar me relacionar com meu pai?


Essa pergunta vem me tirando algumas noites de sono, pq junto com ela vem as lembranças, as terríveis lembranças e os questionamentos... como eu estaria hoje se meu pai não tivesse sido tão cruel? Como seria a Cíntia sem toda essa amargura, sem esse medo todo de tanta coisa? Será que eu seria uma pessoa doce como a criança que um dia eu fui? Aquela criança que cresceu cedo demais... Lembro de ter 3 anos quando dei adeus ao meu herói... Aquela noite eu nunca esquecerei...o medo, a dor... as cenas passam na minha frente como a quem assiste um vídeo no youtube e reprisa e reprisa e reprisa...Uma bebê chorando... uma mãe fritando pastel e uma criança inocente querendo ajudar... Eu sempre queria ajudar minha mãe.Uma vez ela deixou Camila na cama comigo enquanto ia levar as roupas pra lavar. Eu tirei toda roupa da menina pra dar banho nela. Todo mundo achou uma graça, eu ajudando a mãe.

 Da outra vez não teve graça. Quando joguei o pastel pra frigideira o inevitável aconteceu. Veio tudo por cima de mim. Não estava muito quente, mas meu rosto não escapou intacto. As cicatrizes, eu tenho até hoje, se misturam com tantas outras que vieram depois. o que se sucedeu foi surreal. Meu pai me dizendo que se eu chorasse, apanharia. Eu engolindo o chorro, me escondendo no quarto. Sozinha. Terrivelmente sozinha ao 3 anos de idade. 
Aos 5 anos outro susto, Camila dormindo na sala, uma briga no jantar, o prato voando no rosto da minha mãe. Fiquei sentada quietinha olhando aquilo tudo. Já havia aprendido a guardar o chorro pro travesseiro. Quis pedir ajuda e minha mãe não deixou. Meu pai sempre me deixava na escola, a volta eu fazia sozinha. Minha mãe pediu pra que quando chegasse na porta, eu dissesse a ele que nao contasse a ninguém o que aconteceu. Eu fiz. E foi ali que ele descobriu que faria o que quisesse, ninguém saberia. Depois daquela noite eu nunca mais dormi tranquilamente, nunca mais eu consegui confiar em ninguém. 

Eu pensava muito em fugir, tinha vários planos, mas como eu ia fugir e deixar minha mãe e minha irmã pra trás? Elas eram o que me prendia ali. Eu tinha muito medo dela morrer e só me restar ele.
Lembro de quando minha mãe saia pra trabalhar, se ela devia chegar as 18:15 e atrasava 15 minutos eu já ia pro banheiro chorar, era uma época que não existia celular, então como saber que ela voltaria. E se ela não voltasse? e se eu tivesse que viver com ele pra sempre? Só sentia alívio quando via ela chegando, corria pro banheiro e enxugava as lágrimas. ela nunca soube que eu chorava quando ela se atrasava.

Quando eu tinha 8 anos meu pai sofreu um acidente. Grave, mas ele sobreviveu. Imagino como teria sido se ele tivesse morrido. É cruel de se dizer, e já disse isso pra ele e pra mãe dele, muitas vezes quis que ele tivesse morrido. Me arrependo disso hoje, mas é inevitável pensar em como ele seria uma lembrança boa da minha vida. Não que ele já não tivesse surtado antes disso, mas não era tão pesado. As brigas eram constantes, mas a violência era menor. Algumas coisas quebradas e todos iam dormir.Antes disso meu pai não tinha uma arma. É dessa época que tenho as lembranças mais terríveis. Foi a partir daí que eu me habituei a dormir de janela aberta, era mais fácil fugir. Inverno ou verão, ela sempre ficava aberta. Me habituei também a dormir tarde, muitas vezes só quando amanhecia. De manhã eu podia dormir em paz. De dia, a violência estava nas palavras apenas. Um certo dia, para nos punir de alguma coisa, ele matou todos os gatos, meus e da minha irmã. Sempre gostei de gatos, devia ter uns 5, inclusive uma gata grávida. No outro dia eu enterrei todos eles, senti inveja , por que estavam em paz, coisa que eu jamais teria ali.


Ao lado da minha casa tinha um terreno com uma plantação de milho. Atrás da minha casa vários terrenos com mato, muitas arvores. Impossível contar as inúmeras noites que dormi ali. Foi isso que salvou minha vida, da minha irmã, da minha mãe. Jamais esquecerei uma certa noite de lua cheia, que eu via o vulto do meu pai se aproximando, revólver na mão. Ouvia as batidas do meu coração tão altas que iriam me denunciar. Fica a pergunta? Ele iria atirar se tivesse mesmo me encontrado? Teria coragem de me matar ali, aonde tantas vezes brincou comigo? Uma vez ele atirou, e essa cicatriz esta ali, como um aviso que grita: Não confie nunca mais. 

Tantas noites assim repetidas. Quantas vezes isso aconteceu? Não sei dizer. Só sei que foram anos que as coisas foram dessa maneira. Anos em que minha mãe pedia segredo, e eu pra não perde-la guardava. Nunca pedi ajuda a ninguém. O assunto era proibido na casa. Hoje mais de 20 anos depois nunca conversei sobre isso com minha irmã, ela, que sofreu tudo comigo.Me pergunto sempre se é da minha índole e predisposição, ou se foi ele o responsável pelas várias sequelas, dentre elas: a dificuldade que eu tenho em me relacionar com as pessoas e o meu jeito reservado que eu tenho de não falar muito sobre a minha vida. inclusive essa minha reserva vem da minha infância, onde tudo foi muito exposto, os vizinhos ouviam os gritos, mas nunca ninguém chamou a polícia, isso, eu tbm nunca vou entender. Muitos viam ele chegando em casa, quebrando coisas. Das armas ninguém nunca soube. Tudo ali aberto ao léu, pra quem quisesse ver e usar contra mim, e criança sabe ser cruel com esse tipo de informação ... e aí seu pai tava bêbado ontem de novo ...seu pai estava dormindo na rua, na sua casa não tem cama não?  e vinha a gargalhada geral.

Por isso nunca cultivei muitos amigos. Não frequentava a casa de ninguém pq nao poderia levar ninguém pra minha. Sempre fui só, eu, minha irmã perdida em seu próprio mundo e nossas bonecas. Elas eram sempre bem cuidadas, eu as tenho guardadas até hoje. Acho que eu queria ser como elas. No inverno eu sempre as cobria antes de deitar na minha cama. Elas nunca passaram uma noite de inverno no relento, no frio. No frio de uma noite de julho onde as temperaturas podem cair ate zero, e abaixo de zero se somadas ao frio que o medo trás. E esse é outro medo que eu tenho, de um dia ter meus filhos e despertar alguma coisa maléfica aqui dentro. Ter herdado isso do meu pai. A apatia da minha mãe eu não herdei, pois jamais me conformei com aquela situação.E isso eu nunca consegui entender dela. como uma mãe deixa um pai fazer aquilo com um filho? É o tipo de resposta que eu sempre busquei em vão.

Sei que é estranho falar aqui das tantas coisas ruins que ele representou na minha criação. Quando paro pra pensar, com certo esforço vem algumas coisas boas... ele me ensinado a andar de bicicleta, me levando pra brincar na oficina. Sempre fui a filha preferida, que ironia. As coisas que eu gosto, tudo isso veio dele. Meu gosto por história, minha paixão por ciências... tudo veio dele. Lembro quando ele trazia as revistas que eu gostava pra casa:  National Geographic e Superinteressante, uma criança assim nao poderia ser normal. Rsrs. Minha paixão pela leitura veio dele, ele q me ensinou a ler, que me deu o compromisso de emprestar um livro por semana na biblioteca, ler e contar a história a ele. Com o tempo eu lia 3 livros por semana. Uma forma de escapar de um mundo tão cruel e de continuar próxima dele. por que tudo que eu fazia era pra agradar ele. Ele era minha paixão, tirava as melhores notas só para orgulhar ele. Com o tempo isso foi se perdendo, uma forma inconsciente de puni-lo de alguma maneira por tudo que ele fazia.


Mas voltando ao começo desse texto, não consigo sentir que seja a hora de me reaproximar. Com o meu pai eu passei os piores momentos da minha vida, momentos de aflições terríveis. Eu procuro entender tantas coisas, o meu cérebro é uma confusão imensa, um tormento constante. a minha principal busca desde muito pequena foi entender por que ele me coagia em vez de me proteger. Teria que ter algum motivo e eu procurei sempre entender os atos dele, a brutalidade, as palavras ásperas, principalmente as palavras. E dói não saber até hoje a razão principal. Eu descobri tantas coisas, da origem do preconceito dele, da arrogância, mas a razão principal, essa eu desconheço. E eu sigo a minha vida assim, como alguém perdido sem um porto, sem o alívio de saber o porquê de tanta violência, e fico pensando que talvez a minha vida seria mais leve se me dessem algum motivo, saber que existe alguma razão para todas as desgraças me confortaria, me faria agarrar essa verdade e descobrir que meu pai teve uma razão para agir assim, e então eu poderia entendê-lo e quem sabe seguir em frente sem esse apego ao passado, a tudo o que eu vivi. meu pai ainda não morreu, mas ele pra mim é um fantasma, um fantasma de tudo que eu sempre quis e nunca vou ter: um pai.

Tão difícil... cruzar com ele na rua e fingir que não conheço, da mesma forma que ele vazia conosco. Dias de chuva, frio, ele de carro indo trabalhar e nós a pé indo pra escola. Isso eu jamais vou esquecer.

Então pra mim ainda não é a hora,por que eu ainda não tenho a minha família, por que  eu ainda não sou alguém na vida, e eu quero ser, eu quero ter, por mim, por ele. Não por vingança nem pra mostrar que ele estava errado, mas para dizer, Olha, não me importa mais o que você já pensou de mim, mas eu consegui, eu superei e sou alguém nessa vida.  Está orgulhoso pai? 

Será que ele sentirá orgulho de mim se ficar vivo até esse dia? Será que me dará um abraço pedindo desculpas?



O que me dói é que talvez eu nunca vá saber.



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